9 de julho de 2010

Notáveis das neurociências: O gringo açougueiro

[...] Essas incursões não se repetiram por 45 anos, até os anos 30, quando o neurologista português Egas Moniz idealizou a operação que chamou de “leucotomia pré-frontal” e a que submeteu imediatamente vinte pacientes, alguns com angústia e depressão, outros com esquizofrenia crônica. Os resultados por ele reivindicados despertaram imenso interesse quando da publicação de sua monografia em 1936, e sua falta de rigor, sua imprudência e talvez desonestidade foram negligenciadas pela onda de entusiasmo terapêutico. O trabalho de Moniz levou a uma explosão da “psicocirurgia” (o termo que ele cunhou) em todo o mundo -- Brasil, Cuba, Romênia, Grã-Bretanha e especialmente Itália --, mas sua maior repercussão seria nos Estados Unidos, onde o neurologista Walter Freeman inventou uma nova e terrível forma de procedimento cirúrgico, que chamou de lobotomia transorbital.
Ele a descreveu da seguinte maneira: “Consiste em apagá-los com um choque e, enquanto estão sob “anestesia”, enfiar um picão de quebrar gelo entre o globo ocular e a pálpebra através da abóbada da órbita, na realidade para dentro do lobo frontal do cérebro, e fazer um corte lateral, balançando a coisa de um lado para o outro. Passei dois pacientes na faca em ambos os lados e um terceiro de um lado só sem quaisquer complicações, à exceção de um olho muito pisado num dos casos. Podem surgir problemas posteriores mas que são bem tranqüilos, embora definitivamente desagradáveis de olhar. Resta ver como esses casos se mantêm, mas até agora mostraram considerável alívio de seus sintomas, e apenas algumas dificuldades menores de comportamento, resultantes da lobotomia. Podem até ficar de pé e voltar para casa em mais ou menos uma hora.” O desembaraço com que era feita a psicocirurgia, como um procedimento de escritório, com um picão de quebrar gelo, não despertou consternação e horror, como deveria, mas emulação. Mais de 10 mil operações foram realizadas nos Estados Unidos até 1949, e mais outras 10 mil foram feitas nos dois anos seguintes. Moniz foi aclamado mundialmente como um “salvador” e recebeu o Prêmio Nobel em 1951 -- o clímax, nas palavras de Macdonald Critchley, dessa “crônica da vergonha”.
O que se havia alcançado nunca foi a “cura”, é claro, mas um estado dócil, um estado de passividade, tão (ou mais) distante da “saúde” quanto os sintomas ativos originais, e (ao contrário deles) sem possibilidade de ser resolvido ou revertido. Robert Lowell escreve, em “Memories of West Street and Lepke”, sobre o lobotomizado Lepke:


(Débil, careca, lobotomizado,
era levado numa calma ovina
aonde nenhuma reavaliação torturante
podia tirar sua concentração da cadeira elétrica –
suspensa como um oásis no ar
de suas conexões perdidas...)

Quando trabalhei num hospital psiquiátrico estadual entre 1966 e 1990, vi dúzias desses patéticos pacientes lobotomizados, muitos ainda mais destruídos que Lepke, alguns psiquicamente mortos, assassinados por sua “cura”. (nota 10: O enorme escândalo da leucotomia e da lobotomia chegou ao fim no início dos anos 50, não por alguma reserva ou reviravolta médica, mas porque um novo instrumento -- os tranqüilizantes -- tornou-se disponível, sendo apresentado (como acontecera com a própria psicocirurgia) como totalmente terapêutico e sem efeitos colaterais. Se há ou não grande diferença, neurológica ou eticamente, entre a psicocirurgia e os tranqüilizantes é uma questão incômoda que nunca foi encarada de verdade. Se administrados em doses maciças, os tranqüilizantes
certamente podem, como a cirurgia, induzirá “tranqüilidade”, acalmar as alucinações e ilusões do psicótico, mas a calma a que induzem pode ser como a serenidade da morte -- e, por um paradoxo cruel, privar os pacientes de resoluções naturais que podem ocorrer com psicoses, enclausurando-os, em vez disso, numa doença vitalícia causada pelas drogas.)

Oliver Sacks, Um antropólogo em Marte

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